quarta-feira, 23 de junho de 2010

Em Petrópolis já é inverno

Querido Humo,

Mais uma vez sinto muitíssimo tê-lo deixado sem notícias, o que acontece é que realmente minha saída de Lisboa foi um tanto repentina, e mal tive tempo de arrumar as coisas, quanto mais parar e escrever. Minha querida avó está doente, sim. Um mal que aos poucos, a cada dia a mais, a deixa com algumas memórias a menos. No princípio, não me preocupei deveras, achava que era esquecimento da idade. No entanto, agora, não posso ignorar mais. E minha avó não pode mais ficar só. Outro dia, ela fazia o café, foi pegar alguma coisa na sala, se esqueceu da chaleira no fogão e por pouco não colocou fogo em toda a cozinha. Mas tudo está sob controle agora e estou contente de ter retornado ao Brasil. Afinal é minha avó, e não confiaria seus cuidados a mais ninguém. Estou estupefada com a notícia de que Henrique vai se casar! Mas será possível? O que lhe importa mais, um alto cargo na mineradora de seu pai, ou um amor para a vida toda?! Estou estupefada, para dizer o mínimo! Ainda mais com a sua prima Mariana, moça mais sem sal, insossa, que mal sabe manter uma conversa sobre algum assunto mais interessante, que não lê livros! Meu amigo, compartilho da sua decepção julgava Henrique um homem mais inteligente e com mais critérios. Enfim, meu querido amigo, cada dia que passa percebo que as pessoas são mais estranhas do que imagino, que talvez a normalidade e o romantismo é que sejam a loucura dos nossos dias. Tenho pensado muito nisso ultimamente. Estou curiosa para conhecer o famoso Luke. E como está em relação a ele? Eu arriscaria dizer que você não costuma dar certo com esses tipos frágeis em excesso, mas posso estar errada, bem sei. Preciso contar-lhe como as coisas transcorreram em Lisboa. Eu e Laura tivemos um romance rápido, e mais por medo dela e ansiedade de minha parte acabou não dando certo. Ela vem de uma família tradicionalíssima, na qual esse tipo de comportamento jamais seria tolerado. O pai tem muita influência sobre ela (o que veio o complicar muito o nosso relacionamento, devo dizer) e ele é um velho teimoso, se desconfiasse de qualquer coisa nesse sentido a deserdaria. Conversávamos longamente sobre isso, e algumas vezes brigamos. Eu também não poderia assumir nada, principalmente porque minha fonte de renda ainda é muito escassa e não estaria disposta a enfrentar um escândalo. Já sinto falta do sotaque belo de Laurita. Chego a suspirar de saudade. Mas a verdade meu amigo, é que não a amei verdadeiramente, em nenhum momento. E sempre tive consciência disso. Era paixão, pura e simples. E por isso mesmo passageira, eu sabia. Sinto falta de sua presença, de poder sentir seu corpo contra o meu, da textura de sua pele macia, porém não mais do que isso. Sabe o que mais me tirava a paciência em Laura? A sua infantilidade. E agora vem você, logo você! Me contar que está envolvido com um garoto de 17 anos de idade?! Acho no mínimo irônico. Mas já aprendi que a vida nos dá as suas voltas e nos mostra que tudo é relativo, não é verdade? Por isso, me conte mais desse Yves, talvez ele mereça mais o meu respeito do que Henrique. Muito provavelmente, aliás. Essa semana resolvi escrever a Laura, acho que a carta deve demorar a chegar e sei que consigo ela carrega um perigo iminente, imagine se seu pai a recebe e resolve lê-la... Mas já faz mais de três meses que não tenho notícias dela, e Laura não sabe meu endereço no Brasil. Por isso resolvi arriscar. Quanto ao livro está tomando forma, devagarinho, nada de concreto posso lhe dizer ainda, mas suponho que vai gostar. Aqui em Petrópolis faz um frio de menos de dez graus, e com a geada constante tenho a impressão de que é ainda mais frio.

Saudades,

Branca

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Como pode ter feito isso comigo?

Branca,

Como pode ter feito isso comigo? Estive morrendo de preocupação durante todo esse tempo e cheguei a achar que algo seriíssimo havia te acontecido! Na semana passada estava falando com Luke e ele mesmo me incentivou que fosse a Lisboa buscar notícias tuas. Por que teve que voltar às pressas? Foi por causa de tua avó que voltastes? O que ela teve? Continuo com planos de ir à Lisboa, por isso me diga se posso apanhar tuas coisas nalgum lugar. Eu detestaria saber que os objetos pessoais de uma amiga como você foram parar nas mãos de estranhos! E minhas cartas? Levastes? Toda essa reviravolta me deixou completamente anuviado e nem sei bem o que dizer... Se ao menos tivesse uma cópia da última mensagem que te enviei saberia por onde começar. Bem, acredito que minhas últimas palavras tenham sido em torno de Henrique, meu primo, que depois da guerra permaneceu na Europa e que agora já deve estar de volta ao Brasil. Minha amiga, tantas coisas aconteceram desde aquele dia em que nos encontramos... Depois de nossa viagem e de todo o sofrimento pelo qual passamos. Como era de se esperar, logo após a partida de Henrique, eu e Luke nos envolvemos e passamos a ter um relacionamento amoroso de muitíssimo afeto. Se não fosse por culpa do amor que sinto por Henrique, talvez eu e Luke ficássemos juntos para sempre. Acontece que, dois meses depois da partida de meu amado, adoeci e pensei que morrer seria minha única salvação. Luke, frágil e apaixonado, sofreu tanto que desistiu de me ver naquele estado – pediu ajuda a nossos amigos e afogou-se em bebidas e haxixe como eu nunca havia antes presenciado. Foi uma tortura para todos nós, tendo apenas nossa querida Jackie, e sua inexplicável sensatez, a zelar por nós nestes dias tão difíceis. Estive completamente louco devido aos medicamentos e entorpecentes que andei tomando, especialmente quando descobri, através de minha irmã, que Henrique decidiu casar-se com Mariana, nossa prima em comum, para assim ascender na mineradora de meu pai e meu tio. Branca, não sabes o que passei em Paris nesses dias... O que pode estar se passando pela cabeça de meu primo? Casar-se para ter status e empregados a sua disposição? Ele não pode estar amando Mariana, isso não pode ser possível! A discrição com que tenho que falar com minha irmã sobre o assunto me impede de saber dos detalhes desta espalhafatosa e imprevisível união... Nenhuma de minhas cartas foram respondidas por Henrique desde então e, sinceramente, não tenho mais forças para pensar sobre este assunto. Querida, peço-lhe que fique atenta a qualquer notícia que possa vir a ter destes dois. Sei que o casamento não tardará a acontecer e se bem conheço minha prima, insossa e previsível, deve esperar para casar-se com ele na próxima primavera, em meio a muitíssimas flores... Paris não é mais a mesma para mim e penso realmente em mudar-me para algum outro lugar da Europa tão logo consiga meu diploma em Nanterre. Talvez tente a vida em Madri ou em qualquer outro lugar no qual possa me divertir e ganhar algum dinheiro para me sustentar! Se não fosse por Monmartre e pela boemia, creio que jamais sentiria falta deste país triste e sombrio. A sensação que tenho é que nunca conseguirei ser feliz numa cidade tão enfeitiçada pela esperança de renovação a qual se faz refém. Paris é um lixo, um faz de conta que deu certo nesse velho mundo destruído. Bem, não posso me alongar mais porque estou correndo para a aula da tarde e, já que no caminho está o correio, preciso aproveitar para mandar-te estas notícias. Como sei que ficarás curiosa quanto a minha vida amorosa, tenho que contar que estou envolvido com um jovem desenhista chamado Yves Henri. Ele tem apenas 17 anos, mas com ele consigo conversar sobre tudo, ao contrário de Henrique e Luke, o que me faz acreditar que talvez venha a me apaixonar em breve por ele... Assim como deve ter ocorrido entre você e Laura. Por falar nela, conte-me tudo o que aconteceu entre vocês e se ainda mantêm algum contato! Peço ainda que te afastes de Fausto! Ele é completamente louco e acho muito suspeito que tenha conseguido meu paradeiro em Paris. Fale com mamãe e peça a ela que não continue dando informações sobre minha vida para ele! Estou ansioso para saber o que estás planejando com este livro e para ver minha vida com os teus olhos! Só de pensar neste romance fico com um largo sorriso no rosto! Como será este tal Luís Henrique? Espero que ele não tenha nada a ver com o meu Henrique e muito a ver com esse tal Luís, que não sei de onde tirastes, mas que me encanta pela sonoridade do nome... Se depender de nossas histórias em Petrópolis e no Rio, sei que teu romance será um enorme sucesso. Muito boa sorte neste projeto, minha querida! Espero tua carta avidamente!

Je t'embrace très très fort,

Humo.



PS: Acreditas que Charles agora trabalha para Edith Piaf? Isso não é simplesmente incrível? Na próxima te conto como isso tudo se deu e como espero me beneficiar disto!

terça-feira, 1 de junho de 2010

De volta ao Brasil

Querido Humo,

Espero, sinceramente, que essa carta chegue a suas mãos. Querido amigo imagino que deve estar preocupadíssimo comigo, e que provavelmente já tenha me enviado inúmeras cartas depois da última que recebi (aquela do início do ano). Porém, acontece Humo, que tive que retornar ao Brasil às pressas, e o que imaginei que seria uma viagem de apenas um mês, está se tornando uma volta definitiva. Nem mesmo trouxe todas as minhas coisas, nem devo voltar para buscá-las, vão virar história em algum depósito velho e fedido a mofo. Saudoso Humo, não podia ter idéia da saudade que eu estava do Brasil, nosso país é mesmo muito bonito. Aqui estamos no outono, e Petrópolis está linda e gelada, como de costume nessa época do ano. Semana passada, encontrei-me com Fausto, o vizinho de sua mãe, e ele me passou o seu endereço, que eu não sabia de cabeça, e se perdeu entre as muitas coisas minhas que ficaram pela Europa. Tenho que contar-te que o curso transcorreu bem, que passei por um sufoco, mas consegui terminar o trabalho final. Agora estou decidia a ficar por essa cidade linda até o final do ano,pelo menos, e por aqui me dedicar a escrever meu livro, que por tantos dias seguidos tenho matutado na minha cabeça. É isso mesmo, meu amigo, hei de escrever um romance, cheio de mistérios e amores proibidos. E pode se preocupar, pois a sina de quem se envolve com escritores, mesmo no plano da amizade, é se tornar, mais cedo ou mais tarde, um de seus personagens. E você irá abrilhantar as páginas do meu escrito, batizei teu personagem com o nome de Luís Henrique, o que acha? Devo escrever também sobre Laura. As coisas ficaram estranhas por lá, sinto saudades, ela me faz falta todos os dias, mas devo esquecê-la em breve. Esses rompantes de paixão não duram comigo, você bem sabe. Vovó está doente, e como não poderia deixar de ser, me prontifiquei a ficar com ela e ajudá-la no que for necessário. Vovó fez muito por mim, e a amo mais que tudo. Aproveitando que quero me dedicar ao livro, resolvi ficar com ela, nessa casa inspiradora. Até porque não confiaria a ninguém a tarefa de cuidar da minha velhinha preferida. Estou pensando em escrever um pouco sobre nossa juventude aqui em Petrópolis e nossas aventuras no Rio de Janeiro. Talvez assim começar o livro, o que você acha? Ainda não consegui pensar em um título, mas acho que isso não tem importância agora. Com o tempo deve surgir naturalmente. Aguardo por suas novidades, me responda nesse endereço.

Um abraço apertado,

Branca

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Sofrerás, Branca, todos sabemos

Branca,

Infinitas desculpas, minha amiga, este desnaturado sente muito por tê-la abandonado a tua leviana sorte nestes últimos meses. Sinceramente, não o pude evitar frente a tantas coisas surpreendentes que ocorreram. Bem, sinto-me completamente despreparado para contar-lhe sobre tudo o que tenho vivido e, diante da complexidade dos fatos, tentarei ser tão minucioso quanto possível. As preparações para a virada do ano já estavam a todo o vapor e Jackie, Luke, Hélène e eu já havíamos decidido ir ao jantar em casa de Mm. Mimieux, uma célebre pesquisadora da universidade que tornou-se nossa amiga durante os últimos meses do curso de antropologia. Após o jantar, veríamos as comemorações na Champs Élysées com o intuito de repetir a farra e a bebedeira do último 14 de Julho. A esta altura já deves estar desconfiada de que meus planos foram por água abaixo por alguma razão trágica ou maligna. Longe disso, mas ainda sim, tão arrebatadora quanto o fosse, eis que na manhã de 29 de Dezembro fui acordado por um sonolento Luke que me olhava de olhos completamente fechados a dizer “Someone called Heinrich is waiting for you downstairs”... Como é da natureza dos acontecimentos inesperados, aquela frase sem sentido não me proporcionou qualquer idéia do que estaria prestes a acontecer, ou, melhor dizendo, de quem estava prestes a adentrar minha casa e minha vida novamente.

“Heinrich, Heinrich”, pensava eu enquanto vestia uma casaca por cima do horroroso pijama cor de azulejo que tive de comprar para vencer as noites frias (nossa calefação está com problemas, deixando a casa, com sorte, levemente aquecida).

Desci hesitante a escada do edifício, ainda tomado pelos resquícios de haxixe da noite anterior. Contrariado por ter saído tão cedo da cama, praticamente certo de que estava diante de um mal entendido e que o tal Heinrich (um oficial alemão absolutamente desinformado?) estaria à procura de outra pessoa. Ao final da escada, através da pequena vidraça em mosaico da entrada principal, confirmei que Heinrich usava mesmo um uniforme, e apesar do reflexo quebradiço e multiplicado, logo constatei que tratava-se de um homem vitorioso, ao contrário do que suspeitei. Seu contentamento invadia o hall de entrada, multicolorido - vermelho, amarelo e azul. Rodei a fechadura com o coração batendo em minhas têmporas porque já sabia que não se tratava de um alemão chamado Heirinch, como Luke havia pronunciado e eu inferido – ali, sob o céu cinzento de Paris, novamente diante de mim encontrava-se ninguém menos que meu primo Henrique.

Pergunto a você, minha amiga, o que 6 anos são capazes de fazer com duas pessoas que se amaram desde todo sempre? O que eu poderia sentir ao ver seus olhos azuis encarando-me dentre traços recentes e desconhecidos? Henrique, filho do irmão de meu pai, meu primo, meu melhor amigo, meu primeiro amor, meu primeiro beijo, meu primeiro homem. Frente a ele, não pude me sentir diferente de uma criança que recebe, sem se precaver, o melhor presente que lhe poderia ser dado. Minha reação, entretanto, foi estranha o suficiente para que ele se aproximasse de mim e perguntasse se ainda o reconhecia. Ora, é claro que não! Como reconhecer antes do cheiro, do abraço. Como ter certeza? Como reconhecê-lo como algo real após tantas fantasias e incertezas, após tantas vezes tê-lo imaginado morto nalguma trincheira italiana e hostil? Henrique segurou-me pelo pescoço e olhou-me nos olhos da forma mais terna que se pode ser olhado, "Meu menino...", repetiu duas vezes enquanto eu olhava dentro de seu peito. "Meu amor", pensei milhões e milhões de vezes. Se pudesse descrever melhor tal sensação o faria, cara Branca, mas para certos sentimentos, a única descrição cabível é a angústia. Tamanha angústia.


No caminho que nos levou do sopé da escadaria até o meu apartamento lembrei-me dos melhores dias de minha vida, do quarto que dividíamos quando ele nos ia visitar em casa de papai, das brincadeiras pelos corredores, das conversas rudimentares sob o sol e entre a brisa do quintal. Lembrei-me das farras na Lapa, do prostíbulo ao qual me levou pouco antes de me fazer um jovem homem completamente apaixonado. Pensei até mesmo no quanto chorei em teu ombro no dia que soubemos que ele partiria para esta maldita guerra, que quase me arranca Henrique, meu fígado e meus pulmões. Branca, precisavas tê-lo visto, precisas vê-lo para que tenhas uma pequena idéia do que sinto em sua presença!

Entramos em casa, sentei-o no sofá da sala onde ainda restavam meus papelotes da noite anterior, meus vícios zombando de mim ao desmascarar minha futilidade, ao confirmar minha fragilidade diante daquele homem fardado, sério e sereno, uma estátua honrosa naquele cômodo castigado por minhas obsessões e excessos. Corri e entrei no banheiro onde Luke se aprontava para sair, pedi a ele que ficasse, olhei-me no espelho, lavei o rosto e despi-me do pijama maltrapilho, vesti as roupas que meu amigo vestiria para sair, e ele me perguntando "what happened? who is he?". Voltei para a sala e abracei-o, os dois sentados, os dois sorrindo como crianças. Não pude impedir certa afetação e fiquei profundamente incomodado - levemente ressentido com sua masculinidade. Esfriei. Olhei-o de novo e disse repetidas vezes que aquilo só poderia ser um sonho. Luke saiu do banheiro e adentrou. Cumprimentaram-se e Luke apressou-se para sair, voltou para o quarto e não mais saiu de lá. "Sabes que numa semana completo 25 anos", disse. "E como vamos comemorar esta data especial?". "Onde quiseres". Estávamos ainda muito distantes, revirando nossas memórias em busca do que fomos, constatando pouco a pouco o que sentíamos. Ah! Era assim! Era isso que sentia! Quando descobrimo-nos apaixonados, Henrique já era um rapaz de 15 anos - eu estava a completar 10. Àquela época, os 5 anos que nos diferenciavam plantaram-se como uma muralha impossível entre nós. Ao entregarmos um ao outro, meu primo era um homem frente a um menino franzino de apenas 15 e hoje, podíamos nos olhar como dois adultos, livres de culpas ou receios, mas com distâncias ainda maiores. Durante os 12 dias que estivemos juntos, tive por vezes certeza de que meu amor sucumbiria ao medo desesperado de perdê-lo - fosse pela distância física, fosse pelo próprio tempo, que agora apresentava-se com uma faceta ainda mais cruel. Os dias inconsequentes haviam terminado para Henrique, que logo estaria de volta ao Brasil, logo casaria-se, logo me traria crianças a me chamar titio, logo logo logo.

Meu Deus, esta promete ser a maior carta que virei a escrever na vida! Tome um gole de vinho, Branca, tenho gana de te contar tudo. Sejas paciente!

Bem, meus planos mudaram completamente neste ponto. Precisava viajar com Henrique para comemorar o seu aniversário e permitir que os dias me fizessem ter alguma pista do que iria ser feito de nós. Assim, decidi embarcar com ele para Marseille no dia seguinte, e lá permanecemos até sua partida de volta para o Brasil. Querida, o que será de mim? Desde que ele partiu tenho pensado incessantemente em desistir de tudo e mudar-me de volta para casa!

De volta à Marseille, nosso convívio evoluiu do estranhamento ao reestabelecimento da intimidade a duras penas. Eu olhando para ele, tentando esconder minha admiração e o meu amor. Ele olhando sempre em frente, muitas vezes como se não estivesse de fato ali. Aos poucos comecei a percebê-lo me observando enquanto ocupava-me com alguma coisa. Olhava-me com surpresa - às vezes sorrindo, às vezes sisudo, às vezes perdido. Não quis falar sobre a guerra, nenhum de nós queria na verdade. Perguntei se havia alguém em sua vida, e ele me disse que sim. Durante a noite, no quarto que alugamos, enquanto ele dormia na cama ao lado eu observava seu sono inquieto e tinha vontade de despertá-lo para a realidade. Mas, verdadeiramente, não sei em que lado meu primo estaria mais seguro e terminava me aquietando, adormecendo sempre na mesma posição, voltado para ele, velando-o, esforçando-me para absorver o ar pesado que saía de suas narinas. Comemoramos seu aniversário em Vieille-Charité, um bairro repleto de cabarets, sentados em um restaurante em frente ao canal. Bebemos vinho e rimos de fatos irrelevantes de nossa infância. Falamos muito pouco sobre o presente durante toda sua estadia - meu cotidiano o deixaria completamente estarrecido. Dois dias antes de sua partida, quando chegamos em nosso quarto após uma noite de bebedeira, deitamo-nos lado a lado em sua cama e continuamos a rir de uma situação cômica recém vivida com uma das moradoras da pensão de Marseille. No auge da inconsequência promovida pelo álcool, encarei Henrique, segurei-lhe a mão e permiti que me saísse a pergunta: "você sente falta daqueles dias?" Henrique acomodou-se na cama para colocar seus olhos na direção dos meus. "De todos os dias. Todos os dias". Devo reconhecer, que nunca em minha vida poderia imaginar-me nesta situação. Minha amiga, diante desta frase, que soou-me como um epitáfio, ocorreu-me o mais avassalador dos medos, garganta seca e o ímpeto do vômito alcançando o alto da garganta. Levantei-me abruptamente e fui até a janela, fechada devido ao frio, o trinco emperrado. Henrique parou atrás de mim, pegou-me pelos ombros, beijou-me.

Se te pareces um final feliz digno dos iluminados filmes americanos, minha cara, saiba que teu amigo encontra-se hoje na mais profunda escuridão. Minha paixão foi reacendida, meu coração foi condenado às chamas. Penso em Henrique como nunca antes, vivo com ele quando fecho meus olhos antes de dormir e antes de abri-los ao despertar - ali ele está. Ao meu lado, suas pernas encaixadas às minhas, sua respiração aflita fustigando-me o rosto. Sonho desde então com seu sexo, ora doce, ora extremamente violento, aquele natural dos homens que sofrem demais. Tenho pesadelos constantes com suas marcas recentes - no dorso, no alto do braço direito e na perna esquerda, próximo às nádegas. Vejo-o imundo em sua trincheira vazia. Sofro, Branca, o bastante por nós dois - por saber da solidão que nos acompanhará por toda a vida.

Quando voltei à Paris, o mundo já estava inserido forçosamente em uma nova década e pareceu-me que as pessoas passaram a acreditar, repentinamente, em uma promessa real de reconstrução. Os primeiros dias deste novo ano foram claros por aqui, com gente nas ruas apesar do rigor do inverno. Luke passou a tratar-me de forma radicalmente diferente depois desta viagem e disse-lhe irritado que não estava disposto a aceitar cara feia em um momento tão delicado de minha vida. "Se não puder compreender o quão importante era viajar com Henrique, move on, não me procure mais. Não preciso de amigos como você!". Difícil.

Querida, deixo meu egocentrismo de lado agora e pergunto de ti. Como anda teu relacionamento com a belíssima Laura? Ora, é claro que me lembro daqueles lindos olhos! Continua em trevas, minha companheira? Aconselho-te a não permitires assim permanecer por muito tempo. Tomes iniciativa, toque-a, mexa em seus cabelos. Liberte e jogue tudo para o alto: qualquer medo, qualquer preocupação com o futuro. Sofrerás, Branca, todos sabemos, mas tenhas certeza de que não há outra maneira de se viver sobre esta terra.

E o trabalho na universidade? A esta altura deves tê-lo concluído! Bon Dieu, como eu adoraria lê-lo!

Creio que hoje não será possível acatar teu pedido de descrever os amigos dos quais tanto falo! Isto me levaria a mais umas 10 páginas! Prometo-lhe que o farei na próxima e começarei por Mademoiselle Jacqueline Bouvier, nossa belíssima Jackie Lee! Estou certo de que se apaixonarás por ela quando a conhecer... Seus olhos, sua inteligência e bom humor me encantam a cada dia mais.

Com muito amor e saudade,
Humo

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Sobre Laura

Querido Humo,

Prometi escrever-te o quanto antes para contar em mais detalhes o que está acontecendo aqui pelas bandas de Lisboa, mas quase não me resta tempo para sentar-me calmamente e dedicar-me a descrever tudo da forma como gostaria. Me é tentador pensar em passar as festas de final de ano em Paris, afinal preciso conhecer a famosa Torre, e quem sabe esta pode ser uma boa oportunidade. Mas enfim, não posso garantir nada no momento, pois como já lhe contei na carta anterior, estou apressada em terminar e entregar, no prazo, o meu último trabalho, e este consome quase o meu dia por inteiro. Querido, você bem que poderia me explicar melhor quem são seus amigos, de que tanto falas, são tantos que acabo me confundindo com os nomes e não sabendo quem é quem. Pelo que entendi, você está dividindo apartamento com o Luke, não é? E como é isso? E Jackie Lee? Me conte mais, fico aqui imaginando os rostos, os jeitos, mas você não me dá informações suficientes para que eu possa criá-los na minha cabeça. Por aqui, ainda estou morando com a Dona Ana, aquela senhorinha que me aluga o quarto, ela é um amor de pessoa, é realmente agradável morar com ela. Mas como já falei repetidas vezes, não consigo me sentir em casa, mesmo com todos os mimos que ela insiste em me fazer. Mas não posso reclamar, é uma senhora muito cuidadosa, o apartamento fica sempre limpo e tem comidas deliciosas todos os dias. Estou é ficando mal acostumada. Amigo confidente, o que acontece, é que minha cabeça está muito confusa, muitas coisas acontecendo. Por acaso, você se lembra de Laura? Ela é aquela menina, que cheguei a mencionar, faz o mesmo curso que eu na faculdade de letras. Ela chegou por aqui um pouco antes de mim, mais ou menos uns três meses. E acabamos nos tornando amigas. Laura tem os cabelos longos, negros e lisos, e uns olhos que espantam à primeira vista, mas que atraem ao mesmo tempo, pois contêm tanto mistério que instigam qualquer ser pensante a desvendá-los. Saudoso Humo, é difícil admitir, até para ti, mas a verdade é que depois de tantos anos de convivência, acabei me apaixonando por Laura. E nem posso explicar-te como aconteceu, pois não sei. Claro, não pretendo tomar nenhuma atitude, só farei aprender a conviver com esse sentimento confuso e tentar administrá-lo da melhor forma possível. Ainda não sei bem como agir, pois quando estou com ela (leia-se quase todos os dias na faculdade) não consigo disfarçar, me sinto estranha. E o que procuro fazer é tomar distância e não conversar muito com ela. Porém, imagino que já tenha notado o meu afastamento, ela não é boba, e como não pode compreender o que acontece comigo, está magoada. Mas querido, o que posso fazer? É muito difícil, pois quando Laura me fuzila com aqueles olhos de jabuticaba, eu perco o chão e não respondo por mim. Tomei a atitude mais fácil e covarde, não quis enfrentar a questão e ser sincera. Mas Humo, querido, tudo ainda é muito novo para mim, e naturalmente, preciso desse tempo, para absorver todas as transformações que se dão.
Estou em retumbantes elucubrações.

Beijos madruguentos,

Branca

domingo, 6 de dezembro de 2009

Branca, estou perdido (lost / perdu)!


Minha querida romântica fora de hora,

Agradeço por ter me respondido depressa! Para mim também fazem extrema falta os laços originais - poder falar de meus sentimentos em minha própria língua, resgatar histórias tão importantes para a compreensão deste presente repleto de questionamentos. Do ponto de vista da língua, estás inequivocamente a minha frente – agradeça por poder falar o velho português todos os dias! Parece supérfluo, mas muitas vezes, os obstáculos da língua contribuem para essa atmosfera de intransponível solidão à qual me vejo inserido. Com Luke, em casa, falo em inglês o tempo todo, e como me expresso mal neste idioma, nossa conexão se dá de forma demasiado superficial – ontem mesmo, dedicamo-nos durante horas a uma conversa sobre nossos atuais estados emocionais, e de sua parte, lembro-me muito pouco, exceto pela longuíssima narrativa de sua primeira noite com a mulher que partiu seu coração, dias antes de ele vir para Paris. Entretanto, sei que não posso atribuir apenas à língua nossa difícil comunicação - seu francês é sim bastante infantil, apesar de os pais o terem ensinado desde menino - mas creio que minha falta de interesse sobre sua vida é mesmo, o maior empecilho para nossa aproximação. Americanos! Quão incultos e irrelevantes conseguem ser! Ainda mais nestes dias de hoje, quando frequentemente ultrapassam os limites da arrogância e do bom tom. E é nessas horas, quando me deparo com a brutalidade americana tão de perto, que mais sinto falta do humor e da sensibilidade de Lucien. Apesar de todo o desconforto que sua presença hoje me desperta, tenho pensado tanto sobre ele... Especialmente depois de constatar, durante os longos 20 dias em que estivemos juntos no interior, que do Lucien que conheci sobraram somente alguns escombros assombrosos. É triste constatar que a França que nossos pais conheceram não existe mais e que, depois de toda violência a que foi submetida, tenha se tornado essa nação amorfa e temerosa. Pior ainda é ver de perto que seus cidadãos aderiram, de certa forma, a essa personalidade inconstante e volátil! Temo que Paris torne-se uma Nova Iorque em pouco tempo, com sua grandiosidade caipira e artificial. Peço desculpas antecipadas pelas generalizações – sei que teu olhar crítico e aguçado repudia estas minhas arbitrariedades - e a fim de redimir-me, admito que conheci, na última semana, uma das mulheres mais interessantes com quem já tive o prazer de conversar, e que, para meu espanto, vem a ser um exemplar magnífico (talvez único) da América! No curso de letras, onde estuda com Hélène, é conhecida como Jacqueline Lee, mas a mim, esta linda garota foi apresentada apenas com a simplicidade sonora de Jackie. Conversamos basicamente sobre cavalos, sua grande paixão, e eu, esforçando-me ao máximo para recordar os nomes que meu pai tantas vezes insistiu que decorasse, não dei chance que a conversa caísse em desinteresse! Mais tarde, levei-a à Montmartre para fumarmos haxixe na casa de Alain Bretodeau, onde acabamos por passar a noite conversando sobre Marianne, Delacroix e outras coisas sem sentido das quais não me lembro mais... Foi maravilhoso, faltando apenas tua presença para que me sentisse absolutamente feliz! Querida, quantos momentos poderíamos estar dividindo! Tenho certeza de que se estivéssemos mais próximos, todas essas dúvidas e inseguranças teriam se esvaído por completo... Tens certeza de que voltarás ao Brasil? Não queres passar um tempo em Paris antes de partir? Ao menos para as festas de fim de ano? Isto seria magnífico! Teus pais ainda têm planos de estabelecerem-se em São Paulo? Seguirás o mesmo caminho? Caso volte ao Brasil, não poderei imaginar meus dias longe de ti, acabarei por transferir-me também. Nosso contato à distância tem sido formidável, mas o afeto a que nos habituamos, tuas risadas, a árdua tarefa de abrir nossas garrafas de vinho (por que nunca conseguimos ter um bom saca rolhas?), o tempo que juntos observamos passar com o vento diante de nós... É uma pena que já esteja ficando embriagado novamente e senão por isso, contaria sobre o filme de Jacques Tati que assisti durante a estréia, ontem à noite. Com a presença do próprio Tati, no cinema em que levei Anatole quando esteve em Paris pela primeira vez. Procurei sentar-me na mesma poltrona daquele dia, mas creio que não tenha acertado e passei toda a sessão vivendo esse estranhamento, de estar ou não naquele mesmo lugar. À ocasião, foi ela quem escolheu o lugar em que sentamos, bem ao fundo, para que escapássemos dos olhares dos outros espectadores. Presenciar alguém assistindo a um filme no cinema pela primeira vez é mesmo uma experiência poderosa e inesquecível. Enfim, voltando a tua intrigante carta, preciso que me situes nestes enredos amorosos! Estou tão confuso! Quem é o responsável por todas estas revoluções em teu peito? Seria a pessoa na qual estou pensando? A mesma que estava por chegar em Lisboa? Perdão por todo este interrogatório, mas tu sabes o quão curioso é este teu amigo! Deixas-me inquieto com tuas novidades e suponho que esta seja uma estratégia para incentivar-me a pegar o próximo trem para Lisboa! Não tenhas medo de citar nomes e pormenorizar os acontecimentos, sabes que minha correspondência fica guardada em local seguro e inacessível – a única pessoa que poderia, por acaso encontrá-las, seria o Luke, que mesmo que conseguisse ler uma frase sequer em português, não estaria apto a compreender nossas sutilezas! Desculpe-me, estou rindo feito um louco agora...

Com amor e vinho,
Humo

sábado, 5 de dezembro de 2009

De Lisboa

Querido Humo,

Quanta felicidade ao ver sua carta no correio, mal consegui esperar para abrir o envelope em casa, e fui rasgando o papel pela escada, deixando resquícios pelo corrimão. Sentei-me à varanda e li de um só fôlego tudo que tinhas dito. Como é bom ler as palavras tuas, mas ainda me parecem poucas para tamanha saudade. De qualquer maneira, já foram suficientes para alegrar meu dia. O que acontece, querido, é que ainda me sinto uma estranha nessa cidade. Lisboa não é como o Brasil, as pessoas não são tão acolhedoras. Mas aqui é muito bonito, mais bem cuidado,
eu diria. O fato é que me sinto uma estranha nessa cidade, me falta raiz. E justo agora, quando
entra o verão no Brasil, e as pessoas vão à praia tomar sol, me faltam casacos para espantar
o frio. Não vejo a hora de voltar para casa. A verdade é que não consigo me habituar. Humo,
você não imagina como está minha vida, praticamente virada de pernas para o ar, estou
confusa, praticamente uma desconhecida que pulsa inquieta dentro do meu próprio corpo.
A formatura foi deliciosa, ainda bem que agora falta pouco para o regresso. Você bem que
podia vir me visitar antes disso. Enfim, ainda falta entregar o trabalho final, que não consigo
terminar. Querido, como eu dizia, aconteceram muitas coisas nas últimas semanas. Ou se
olhar por outro lado, o real pode ser que não tenha acontecido nada. Mas esse nada que pode significar muito mais que isso, me deixa em suspensão. Parece que preciso nadar para sair do fundo de um rio e respirar, ainda estou no meio do trajeto, quase sem ar. O que ocorre é que, confesso, posso ter sido ludibriada pelas seduções do amor, sim, eu sei, você deve estar rindo agora, não podendo crer no que digo. Mas é verdade, acho que me apaixonei, depois de tanto
tempo, e achando que nunca mais fosse acontecer comigo, que eu não era tão inocente assim,
a ponto de cair nessa. Como a gente se engana não é? Quando menos esperamos, ele reaparece
e nos envolve com suas garras disfarçadas de bons sentimentos, de pequenas chamas,
que te permitem acreditar que dessa vez, por que não? Tudo pode ser diferente. Porém,
querido, já estou sofrendo, imagine, me apaixonei novamente pela pessoa errada. E para
piorar, não sei o que fazer. Não consigo controlar o que sinto, e nunca antes, me pareceu
tão errado gostar de alguém. Tudo começou com palavras que acho, posso ter interpretado
mal, mas o fato é que tudo me instigou de tal forma, que quando dei por mim, já estava mais
envolvida do que queria. O meu mal é que começo a criar histórias que ainda não existem
na minha cabeça, e essas histórias tomam parte da minha vida, e quando eu percebo já não
sei mais como sair disso tudo. Enfim querido, não quero me alongar demais. Muito bom saber
das suas viagens e saber que estás bem. Numa próxima carta te conto com mais detalhes
o que está acontecendo por acá.

Da sua amiga, uma romântica fora de época,

Branca