Branca,
Infinitas desculpas, minha amiga, este desnaturado sente muito por tê-la abandonado a tua leviana sorte nestes últimos meses. Sinceramente, não o pude evitar frente a tantas coisas surpreendentes que ocorreram. Bem, sinto-me completamente despreparado para contar-lhe sobre tudo o que tenho vivido e, diante da complexidade dos fatos, tentarei ser tão minucioso quanto possível. As preparações para a virada do ano já estavam a todo o vapor e Jackie, Luke, Hélène e eu já havíamos decidido ir ao jantar em casa de Mm. Mimieux, uma célebre pesquisadora da universidade que tornou-se nossa amiga durante os últimos meses do curso de antropologia. Após o jantar, veríamos as comemorações na Champs Élysées com o intuito de repetir a farra e a bebedeira do último 14 de Julho. A esta altura já deves estar desconfiada de que meus planos foram por água abaixo por alguma razão trágica ou maligna. Longe disso, mas ainda sim, tão arrebatadora quanto o fosse, eis que na manhã de 29 de Dezembro fui acordado por um sonolento Luke que me olhava de olhos completamente fechados a dizer “Someone called Heinrich is waiting for you downstairs”... Como é da natureza dos acontecimentos inesperados, aquela frase sem sentido não me proporcionou qualquer idéia do que estaria prestes a acontecer, ou, melhor dizendo, de quem estava prestes a adentrar minha casa e minha vida novamente.
“Heinrich, Heinrich”, pensava eu enquanto vestia uma casaca por cima do horroroso pijama cor de azulejo que tive de comprar para vencer as noites frias (nossa calefação está com problemas, deixando a casa, com sorte, levemente aquecida).
Desci hesitante a escada do edifício, ainda tomado pelos resquícios de haxixe da noite anterior. Contrariado por ter saído tão cedo da cama, praticamente certo de que estava diante de um mal entendido e que o tal Heinrich (um oficial alemão absolutamente desinformado?) estaria à procura de outra pessoa. Ao final da escada, através da pequena vidraça em mosaico da entrada principal, confirmei que Heinrich usava mesmo um uniforme, e apesar do reflexo quebradiço e multiplicado, logo constatei que tratava-se de um homem vitorioso, ao contrário do que suspeitei. Seu contentamento invadia o hall de entrada, multicolorido - vermelho, amarelo e azul. Rodei a fechadura com o coração batendo em minhas têmporas porque já sabia que não se tratava de um alemão chamado Heirinch, como Luke havia pronunciado e eu inferido – ali, sob o céu cinzento de Paris, novamente diante de mim encontrava-se ninguém menos que meu primo Henrique.
Pergunto a você, minha amiga, o que 6 anos são capazes de fazer com duas pessoas que se amaram desde todo sempre? O que eu poderia sentir ao ver seus olhos azuis encarando-me dentre traços recentes e desconhecidos? Henrique, filho do irmão de meu pai, meu primo, meu melhor amigo, meu primeiro amor, meu primeiro beijo, meu primeiro homem. Frente a ele, não pude me sentir diferente de uma criança que recebe, sem se precaver, o melhor presente que lhe poderia ser dado. Minha reação, entretanto, foi estranha o suficiente para que ele se aproximasse de mim e perguntasse se ainda o reconhecia. Ora, é claro que não! Como reconhecer antes do cheiro, do abraço. Como ter certeza? Como reconhecê-lo como algo real após tantas fantasias e incertezas, após tantas vezes tê-lo imaginado morto nalguma trincheira italiana e hostil? Henrique segurou-me pelo pescoço e olhou-me nos olhos da forma mais terna que se pode ser olhado, "Meu menino...", repetiu duas vezes enquanto eu olhava dentro de seu peito. "Meu amor", pensei milhões e milhões de vezes. Se pudesse descrever melhor tal sensação o faria, cara Branca, mas para certos sentimentos, a única descrição cabível é a angústia. Tamanha angústia.
No caminho que nos levou do sopé da escadaria até o meu apartamento lembrei-me dos melhores dias de minha vida, do quarto que dividíamos quando ele nos ia visitar em casa de papai, das brincadeiras pelos corredores, das conversas rudimentares sob o sol e entre a brisa do quintal. Lembrei-me das farras na Lapa, do prostíbulo ao qual me levou pouco antes de me fazer um jovem homem completamente apaixonado. Pensei até mesmo no quanto chorei em teu ombro no dia que soubemos que ele partiria para esta maldita guerra, que quase me arranca Henrique, meu fígado e meus pulmões. Branca, precisavas tê-lo visto, precisas vê-lo para que tenhas uma pequena idéia do que sinto em sua presença!
Entramos em casa, sentei-o no sofá da sala onde ainda restavam meus papelotes da noite anterior, meus vícios zombando de mim ao desmascarar minha futilidade, ao confirmar minha fragilidade diante daquele homem fardado, sério e sereno, uma estátua honrosa naquele cômodo castigado por minhas obsessões e excessos. Corri e entrei no banheiro onde Luke se aprontava para sair, pedi a ele que ficasse, olhei-me no espelho, lavei o rosto e despi-me do pijama maltrapilho, vesti as roupas que meu amigo vestiria para sair, e ele me perguntando "what happened? who is he?". Voltei para a sala e abracei-o, os dois sentados, os dois sorrindo como crianças. Não pude impedir certa afetação e fiquei profundamente incomodado - levemente ressentido com sua masculinidade. Esfriei. Olhei-o de novo e disse repetidas vezes que aquilo só poderia ser um sonho. Luke saiu do banheiro e adentrou. Cumprimentaram-se e Luke apressou-se para sair, voltou para o quarto e não mais saiu de lá. "Sabes que numa semana completo 25 anos", disse. "E como vamos comemorar esta data especial?". "Onde quiseres". Estávamos ainda muito distantes, revirando nossas memórias em busca do que fomos, constatando pouco a pouco o que sentíamos. Ah! Era assim! Era isso que sentia! Quando descobrimo-nos apaixonados, Henrique já era um rapaz de 15 anos - eu estava a completar 10. Àquela época, os 5 anos que nos diferenciavam plantaram-se como uma muralha impossível entre nós. Ao entregarmos um ao outro, meu primo era um homem frente a um menino franzino de apenas 15 e hoje, podíamos nos olhar como dois adultos, livres de culpas ou receios, mas com distâncias ainda maiores. Durante os 12 dias que estivemos juntos, tive por vezes certeza de que meu amor sucumbiria ao medo desesperado de perdê-lo - fosse pela distância física, fosse pelo próprio tempo, que agora apresentava-se com uma faceta ainda mais cruel. Os dias inconsequentes haviam terminado para Henrique, que logo estaria de volta ao Brasil, logo casaria-se, logo me traria crianças a me chamar titio, logo logo logo.
Meu Deus, esta promete ser a maior carta que virei a escrever na vida! Tome um gole de vinho, Branca, tenho gana de te contar tudo. Sejas paciente!
Bem, meus planos mudaram completamente neste ponto. Precisava viajar com Henrique para comemorar o seu aniversário e permitir que os dias me fizessem ter alguma pista do que iria ser feito de nós. Assim, decidi embarcar com ele para Marseille no dia seguinte, e lá permanecemos até sua partida de volta para o Brasil. Querida, o que será de mim? Desde que ele partiu tenho pensado incessantemente em desistir de tudo e mudar-me de volta para casa!
De volta à Marseille, nosso convívio evoluiu do estranhamento ao reestabelecimento da intimidade a duras penas. Eu olhando para ele, tentando esconder minha admiração e o meu amor. Ele olhando sempre em frente, muitas vezes como se não estivesse de fato ali. Aos poucos comecei a percebê-lo me observando enquanto ocupava-me com alguma coisa. Olhava-me com surpresa - às vezes sorrindo, às vezes sisudo, às vezes perdido. Não quis falar sobre a guerra, nenhum de nós queria na verdade. Perguntei se havia alguém em sua vida, e ele me disse que sim. Durante a noite, no quarto que alugamos, enquanto ele dormia na cama ao lado eu observava seu sono inquieto e tinha vontade de despertá-lo para a realidade. Mas, verdadeiramente, não sei em que lado meu primo estaria mais seguro e terminava me aquietando, adormecendo sempre na mesma posição, voltado para ele, velando-o, esforçando-me para absorver o ar pesado que saía de suas narinas. Comemoramos seu aniversário em Vieille-Charité, um bairro repleto de cabarets, sentados em um restaurante em frente ao canal. Bebemos vinho e rimos de fatos irrelevantes de nossa infância. Falamos muito pouco sobre o presente durante toda sua estadia - meu cotidiano o deixaria completamente estarrecido. Dois dias antes de sua partida, quando chegamos em nosso quarto após uma noite de bebedeira, deitamo-nos lado a lado em sua cama e continuamos a rir de uma situação cômica recém vivida com uma das moradoras da pensão de Marseille. No auge da inconsequência promovida pelo álcool, encarei Henrique, segurei-lhe a mão e permiti que me saísse a pergunta: "você sente falta daqueles dias?" Henrique acomodou-se na cama para colocar seus olhos na direção dos meus. "De todos os dias. Todos os dias". Devo reconhecer, que nunca em minha vida poderia imaginar-me nesta situação. Minha amiga, diante desta frase, que soou-me como um epitáfio, ocorreu-me o mais avassalador dos medos, garganta seca e o ímpeto do vômito alcançando o alto da garganta. Levantei-me abruptamente e fui até a janela, fechada devido ao frio, o trinco emperrado. Henrique parou atrás de mim, pegou-me pelos ombros, beijou-me.
Se te pareces um final feliz digno dos iluminados filmes americanos, minha cara, saiba que teu amigo encontra-se hoje na mais profunda escuridão. Minha paixão foi reacendida, meu coração foi condenado às chamas. Penso em Henrique como nunca antes, vivo com ele quando fecho meus olhos antes de dormir e antes de abri-los ao despertar - ali ele está. Ao meu lado, suas pernas encaixadas às minhas, sua respiração aflita fustigando-me o rosto. Sonho desde então com seu sexo, ora doce, ora extremamente violento, aquele natural dos homens que sofrem demais. Tenho pesadelos constantes com suas marcas recentes - no dorso, no alto do braço direito e na perna esquerda, próximo às nádegas. Vejo-o imundo em sua trincheira vazia. Sofro, Branca, o bastante por nós dois - por saber da solidão que nos acompanhará por toda a vida.
Quando voltei à Paris, o mundo já estava inserido forçosamente em uma nova década e pareceu-me que as pessoas passaram a acreditar, repentinamente, em uma promessa real de reconstrução. Os primeiros dias deste novo ano foram claros por aqui, com gente nas ruas apesar do rigor do inverno. Luke passou a tratar-me de forma radicalmente diferente depois desta viagem e disse-lhe irritado que não estava disposto a aceitar cara feia em um momento tão delicado de minha vida. "Se não puder compreender o quão importante era viajar com Henrique, move on, não me procure mais. Não preciso de amigos como você!". Difícil.
Querida, deixo meu egocentrismo de lado agora e pergunto de ti. Como anda teu relacionamento com a belíssima Laura? Ora, é claro que me lembro daqueles lindos olhos! Continua em trevas, minha companheira? Aconselho-te a não permitires assim permanecer por muito tempo. Tomes iniciativa, toque-a, mexa em seus cabelos. Liberte e jogue tudo para o alto: qualquer medo, qualquer preocupação com o futuro. Sofrerás, Branca, todos sabemos, mas tenhas certeza de que não há outra maneira de se viver sobre esta terra.
E o trabalho na universidade? A esta altura deves tê-lo concluído! Bon Dieu, como eu adoraria lê-lo!
Creio que hoje não será possível acatar teu pedido de descrever os amigos dos quais tanto falo! Isto me levaria a mais umas 10 páginas! Prometo-lhe que o farei na próxima e começarei por Mademoiselle Jacqueline Bouvier, nossa belíssima Jackie Lee! Estou certo de que se apaixonarás por ela quando a conhecer... Seus olhos, sua inteligência e bom humor me encantam a cada dia mais.
Com muito amor e saudade,
Humo
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